Visagem
A brisa da manhã invadiu seu quarto. Quase ninguém na
rua. Ninguém em casa além dela.
Desceu as escadas suavemente. O cheiro da manhã a
entorpecia.
Saiu a caminhar. Cabelos soltos, sonhos leves, pele
arrepiada.
Flutuando pelas ruas, não percebia os olhares atônitos.
Gozava a manhã.
Andou até ter os cabelos umedecidos pelo suor, a
camisola colada ao corpo...
Os olhares cada vez mais atônitos!
Novamente em casa, tomou um longo banho, pôs seus vinis
na máxima altura, abriu as janelas e dançou. Sentia-se, então, menos só.
Chovia, quando abriu os olhos. Uma chuva cor de prata
inundava seus olhos, iludia seus ouvidos...
Outra vez, as escadas, a porta, a rua...
Alguns guarda-chuvas davam o tom sério à manhã de
prata, enquanto os olhares transpareciam prazer.
A manhã tornava-se bordada de renda.
De braços abertos, ela experimentava a vida trazida
pelo novo dia. Os guarda-chuvas a emolduravam. Silenciosamente, destacam sua
beleza.
Comprou flores, trocou os lençóis, cuidou do jardim.
Mais tarde recitou seus poemas favoritos em alta voz diante do espelho. Riu e
dançou. Era uma menina! Uma estudante travessa no seu quarto de segredos.
A manhã surpreendeu-a nua sob os lençóis bordados.
Um arrepio! Seus pés sentiram a aspereza da calçada.
Ela vibrava. O contato era surpreendente. Arriscou mais um, mais outro. E passo
a passo cruzou a praça sob olhares novos e antigos: emudecidos, estupefatos.
Era linda!
Era menina, moleca, mulher. Nua! Envolta na densa
neblina daquela manhã.
Tudo a contemplava.
Quando ele chegou de viagem, encontrou-a diferente. Sem
amarras, sem medos, sem limites...
Encantou-se. Amou-a ainda mais. Pelas ruas, ostentava a
mulher com um sorriso de canto a canto.
Os olhos da cidade agora se cruzavam, segredando o
desejo de vê-lo novamente partir. Invejando-o cúmplices.