sábado, 16 de julho de 2011

Uma e outra



A sexta-feira é santa! Levanta-se às seis. A casa está em silêncio. Apóia-se na velha bengala, caminha até outro quarto e bate com o cajado na porta.
- Ta na hora!
Quem abre é o filho. Em seguida, a nora sai do quarto sem dizer palavra.
Seus noventa anos lhe dão direitos que ela cultiva desde sempre. Não se abala com o mau humor da outra.
A água para o banho aquecida no fogão a lenha como deve ser! A bacia de cobre é colocada no chão do banheiro e salpicada com pétalas de rosa branca. Experimenta. Reclama. Torna a experimentar.
O céu de abril é claro, sem nuvens. Nas plantas do quintal, uma fina neblina se dissipa e revela o orvalho dormindo sobre as folhas. Uma manta de crochê cobre a velha cadeira de balanço, violetas várias enfeitam a jardineira da imensa varanda. O piso de vermelhão brilha.
Toma seu banho, veste-se de linho azul, cuidadosamente passado. Reparte os cabelos em duas tranças presas num coque. Aprova a imagem no espelho e sai.
Uma farta mesa de café da manhã está posta: canjica, bolo, café preto, aipim, batata doce, milho cozido. Certifica-se de que tudo esta a seu gosto, troca os pratos de lugar.
O barulho que vem de fora anuncia que eles estão chegando. Apressa-se. Precisa recebê-los sentada em sua cadeira. Um a um.
- Sua bênção.
A mão estendida espera um beijo e uma reverência.
- Deus te faça feliz!
Eles são muitos, um séquito! Filhos, netos, bisnetos e afilhados. Ela, a Senhora.
Em torno da mesa a oração em voz miúda, porque não é dia de festa.
Olha para a nora. Os pratos não estão no lugar! Recebe de volta o mesmo olhar implacável.
A canjica é servida com amendoim torrado em casa, no fogão a lenha, como a Senhora gosta! Ela mesma fora à cidade escolhê-los para a ocasião. Escolhera também a canjica! Era preciso ciência pra isso. Apesar do cansaço da idade, se não fosse por ela...
Todos discretamente olham para a nora que retribui o olhar com uma altivez inexplicável.
O café termina, vão embora, mas voltam para o almoço de Páscoa, quando seguindo a tradição comerão um peru... do quintal, é claro!


A Senhora balança na sua cadeira de rainha. Absoluta!
A nora prepara a comida para perus e galinhas: amendoim e canjica de primeira comprada pela sogra.


A Senhora balança na sua cadeira de rainha. Absoluta!
A nora termina de enterrar o peru caipira e o substitui por um de supermercado que é mergulhado no incomparável tempero de sua sogra.


As duas na varanda sem dizer palavra...
Quase absolutas.


Farinhas do mesmo saco!

8 comentários:

  1. Aqui você assina seu nome como uma contista de promeira ordem.
    Amei!

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  2. Quantas imagens! Incontestavelmente sólido em minha imaginação. Parabéns!

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  3. Ando sem tempo. Mas sempre quando posso dou uma passadinha no teu blog.
    Bom findi

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  4. Encantador seu conto...me senti vendo cada um dos detalhes... inclusive os olhares de sogra e nora...
    Boa semana amiga...beijos...
    Valéria

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  5. Mais do que descrever, as palavras criam uma atmosfera...
    Abraços!

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  6. ....conviver-deixar viver e evoluir...né nao??


    beijo

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  7. Que beleza amiga,adorei este conto,uma melve lembrança de minha infancia, o piso de vermelhão,pude ate ver a cera Parquetina,rsrs.
    Um show de exposição da tradição e novos costumes que atropelam as tradiçoes.
    Parabens Valeria,belo exercicio.
    Um carinhoso abraço.

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